Quanto custa a sua certeza?
- Patrícia Grilli
- 23 de ago. de 2022
- 4 min de leitura
Eu tinha uma tia avó que faleceu no passado com 103 anos, no ano passado. Ela se chamava Silvia, foi professora vida toda, numa época em que ser mulher e trabalhar não era uma coisa tão comum.
Eu me lembro que ela era extremamente afetuosa comigo, e por eu ter sido uma criança muito sensível que sofreu bastante com situações de conflito em casa e na escola, sempre a procurava tentando encontrar respostas dos motivos que faziam as pessoas não serem tão legais comigo, sem motivo aparente.
Eu tinha muitos conflitos com as minhas amizades na infância, para falar a verdade tive poucos amigos nessa fase, sempre sofri muito com bullying na escola. Eu achava muito injusto e não achava certo ver as pessoas sofrendo por serem diferentes, e achava um absurdo as pessoas que faziam as outras sofreram deliberadamente.
Em várias ocasiões perguntei a tia Silvia porque as pessoas eram assim?! Porque elas simplesmente não eram legais umas com as outras, porque elas precisavam ser agressivas, fazer as outras sofrerem como uma espécie de diversão? Definitivamente aquilo não entrava na minha cabeça e muito menos no meu coração.
Quando era adolescente comecei a ter os primeiros relacionamentos afetivos e de novo as incoerências que eu percebia entre o que as pessoas faziam me traziam novas aflições, novamente eu ia procurar a sabedoria da tia Silva para entender o que fazer.
Nesse quesito dos relacionamentos ela tinha bastante experiência já que ela vem daquela época que se você casou não podia separar.
Ela era a mãe de 4 filhos, e foi casada por mais de 60 anos se não me engano. Uma vez eu perguntei para ela como ela aguentava ficar tanto tempo com uma pessoa que era bem diferente dela como era o caso do meu tio avô. Como acontecia com quase todos os homens da minha família, Tio Geraldo era o cara calado, na dele, que não gostava de muito barulho e nem de muita agitação. Já ela era professora, palestrante e coordenadora de vários projetos no centro espírita.
Lembro-me que a resposta dela foi muito interessante: "Nessa vida cada um de nós nasce com um desafio próprio, não temos o direito de julgar o desafio do outro, e podemos decidir se vamos aprender com essas diferenças ou não - quando você simplesmente desiste de alguém por ele ser diferente de você, não demonstra o mínimo de compreensão com os desafios que essa criatura tem na vida, mas lembre-se todos estamos aprendendo".
E sim ela sempre falava como se estivesse numa palestra para muitas pessoas, coisa que a minha avó irmã dela também fazia. Acho que agora vocês já sabem de quem eu puxei né?
Mas se a gente for traduzir essa frase dela, e juntar com o raciocínio que eu trouxe para vocês na semana passada, a gente pode resumir numa frase simples e curta - " Eu sou eu com tudo que me compõe, e você é você com tudo que te compõe - podemos decidir nos encontrar ou não"
E essa sabedoria da minha tia avó - me fez lembrar de um dos princípios do psicodrama que é a minha abordagem de trabalho terapêutica - o psicodrama estuda as relações humanas, entende que no palco da vida, ninguém existe sozinho, literalmente você não existe os outros.
Mesmo que você estivesse numa ilha deserta sozinho, sem nenhuma pessoa à sua volta ainda assim, você não estaria completamente sozinho dentro da sua cabeça. Afinal de contas tudo isso que você entende como “sendo você mesmo” foi construído por um coletivo de pessoas que vieram bem antes de você...
Essa é grande complexidade de ser humano - ao nos relacionarmos entre nós ao mesmo tempo nos individualizamos - o que significa que só sabemos o que gostamos, ou não, no contato com outro. O conflito gerado entre pessoas que são diferentes não é necessariamente ruim.
É exatamente esse choque que pode ampliar o seu entendimento de si mesmo, ou pode reduzir as relações que você estabelece. E assim como a tia Silvia me ensinou, somos nós mesmos que temos o poder de decisão:
Nós vamos tirar todos da nossa vida que são diferentes de nós mesmos nos isolando impedindo assim qualquer chance de aprendizado vivendo numa bolha supostamente satisfatória?
Ou nós vamos nos permitir o conflito, nos abrir para o debate e quem sabe assim evoluir?Essa é uma decisão de cada um de nós e só acontece de dentro para fora.
Acho bom dizer o ÓBVIO: existem situações na vida em que o diálogo não é uma alternativa possível. Não há o que dialogar com pessoas que cometem crimes de ódio por exemplo como, homofobia, racismo, transfobia, p&dofilia, etc....
Mas em todas as outras situações corriqueiras da nossa vida, eu realmente gostaria que você pudesse pelo menos pensar na possibilidade de se abrir para o diálogo. Lembrando que todo em qualquer encontro você entrega um pouco e leva um pouco. Não tenha medo de perder as sua certezas, tenha medo de ficar preso nelas para sempre....
Tia Silva acreditava muito na educação das pessoas, ela dedicou uma vida inteira a compreender com muita paciência o tempo de aprendizado dos outros. Eu confesso que até hoje essa é a parte mais difícil para mim, aceitar e compreender que cada pessoa tem um tempo para perceber, identificar suas falhas e principalmente um tempo longo para decidir agir de maneira diferente.
Não se iludam o processo terapêutico funciona da mesma forma - terapeuta e paciente assinam um contrato de que vão naquela relação viver uma experiência diferente - precisam se abrir de maneira autêntica - e vão compartilhar suas vulnerabilidades para só assim poderem entender novas possibilidades de se viver a vida, de um jeito melhor.
E você, também tem ou teve uma "tia Silvia" na vida? Quem era? O que ela te ensinou?




Comentários